Seres das Trevas Capítulo 1



 Capítulo 1 

 Os Silverfang (Parte 1)



“Para toda caça, existe um caçador”.



 Essa frase era muito falada na Mansão dos Silverfang. Na verdade, era mais como um lema para aquela família, que a séculos exercia o papel de caçadores. 


O jovem Nagel não entendia muito bem o porquê de seus familiares falarem tanto dessa frase. Porém, na mente de uma criança de sete anos, ouvi-la praticamente todos os dias já estava se tornando algo intrigante.


Não, era só chato mesmo.


— Ah, vovô! A gente já tá fazendo isso o dia todo!


— Nós só começamos a uma hora! Não seja tão preguiçoso!


A discussão podia ser ouvida de todos os cantos da grandiosa propriedade. Já era algo comum desde quando o garoto havia começado sua preparação dois anos antes.


 — O que?! Só uma hora?! — ajoelhando-se no gramado, Nagel fez a mais genuína expressão de pavor que conseguiu no momento. 


— Não é possível…


— Vamos logo, não seja tão preguiçoso! — Nolu Silverfang estava levemente decepcionado com o drama exagerado feito pelo neto. Porém, o ancião suspirou fundo e esfregou as têmporas, voltando a ter calma. Por mais que fosse um Silverfang, ele ainda era uma criança.


— Certo, vamos só mais uma rodada e você está liberado.


— Sério?! — Ao ouvir aquelas palavras, o garoto se ergueu em um único e hábil movimento. Seus olhos brilhavam em entusiasmo.


 — Mudou de humor bem rápido, hein?


 — Vamos lá, vovô! — Assumindo a sua posição de combate, sorriu empolgado.


 — Vamos acabar logo com isso!


— Arrogante, hein? — Suspirou. — Realmente, tal pai, tal filho…


— Lá vou eu!


Em um movimento rápido, o garoto impulsionou o seu corpo para a frente, conseguindo em poucos segundos executar seu primeiro golpe. Porém, seu avô conseguiu desviar facilmente da investida.


 — Ora, nem esperou que eu me preparasse?


— Como se precisasse!


Sem demora, realizou um chute rotatório, acertando o espaço vazio onde a um segundo atrás estava seu oponente. Enquanto desviava de todos os golpes que se seguiram, Nolu examinou minuciosamente os movimentos do neto.


Ele melhorou surpreendentemente rápido nesses últimos meses, pensou. Mas ainda falta muito para chegar lá.


Com um golpe rasteiro, lançou o garoto no ar, derrubando-o de costas no chão. 


O mais novo sequer teve tempo de raciocinar o que havia acontecido naquele milésimo de segundo. Em um momento, estava acelerando seus golpes, chegando cada vez mais perto de seu oponente. No outro, estava com as costas no chão, totalmente indefeso e incapaz.


— O que…?! — Antes de conseguir reagir, sentiu um peso a mais sobre o seu peito e ao abrir os olhos viu o pé de seu avô sobre si, imobilizando-o por completo.


— Você está menos pior do que antes — disse ao se retirar de cima do menino, dando a mão para o ajudar a levantar logo em seguida. Essa era sua maneira de dizer “você foi bem”. — reclama das minhas aulas, mas está treinando bastante sozinho, não é?


— Eu não treino sozinho! — retrucou um pouco indignado ao levantar-se e tirar a sujeira da roupa. — a Nayir me ajuda!


— A Nayir? Você está pedindo ajuda da sua irmã?


— Não fala desse jeito! Ela é muito forte!


— Sou forte, irmão?


Nagel estagnou. Ficou petrificado. Não esperava que ela estivesse ali, bem atrás dele.


Apesar de ser um ano mais nova que ele, Nayir Silverfang já era capaz de lutar de igual para igual com seu irmão assim que começou seu treinamento aos cinco anos de idade. 


Nagel já tinha ouvido falar de todos os estrangeiros que foram visitar a mansão que os potenciais de ambos eram gigantescos, mas sempre davam ênfase para Nayir.


Devido à diferença de idade, era poucos centímetros menor que o irmão mais velho, contudo tinha os mesmos olhos azuis que todos em sua família possuíam.


Engolindo em seco, Nagel começou a se virar lentamente em sua direção, tentando buscar as melhores palavras.


— Olha, Nayir, eu disse isso, mas…


— Snif…


Após esse simples fungado, Nagel se viu completamente sem esperanças e até tentou escapar. 

No entanto, a menina foi mais rápida, envolvendo seu tronco com os braços e o abraçando com tamanha intensidade que ambos caíram no chão. Ao sentir o baque do chão em suas costas ao cair, Nagel tossiu forte.


— Obrigado irmão! — Agradeceu Nayir, chorando cada vez mais exagerada. — Eu também gosto muito de você! 


— E-Ei! Sai de cima de mim! Tá me molhando todo!


— Não fale desse jeito com ela, maninho— pediu uma outra pessoa que Nagel não esperava que estivesse ali também —, não sabe o quanto ela falou para mim de seus treinamentos enquanto estávamos vindo para cá.


Quando o menino ergueu o olhar e o viu, um sorriso de orelha a orelha surgiu em seu rosto.


Nagi Silverfang era muito mais velho do que seus irmãos, afinal era o segundo filho mais velho de seu pai. Mas apesar da idade avançada, era muito próximo dos caçulas.

 

— Nagi! — Aproveitando-se de que a mais nova havia se desvencilhado um pouco dele, Nagel se moveu rapidamente, conseguindo se livrar do abraço apertado e correndo até onde estava seu irmão. — Você voltou tão cedo! Por que não me avisou?!


— Foi mal maninho, eu não tive tempo.


— Também tomei um susto quando vi o Nagi. — Revelou Nayir, ainda com algumas lágrimas escorrendo pelo rosto. 


— Ah, mas você é uma covarde mesmo — zombou o garoto, estirando a língua.


— Ei! Não seja malvado desse jeito comigo!


A discussão se seguiu por um tempo de forma descontraída entre as duas crianças. E enquanto estavam ali, tentando provar um ao outro quem era o mais corajoso dos dois, os flocos de neve começaram a cair ao seu redor. 


Com o tempo, a grama verde foi coberta por uma fina camada branca.


No céu acima deles, as nuvens começaram a se fechar, mas ainda assim um fino raio do sol poente conseguiu transpassar por entre elas, iluminando o local onde se erguia a mansão. 


Os ventos constantes estavam se tornando cada vez mais frios, e todos os que estavam do lado de fora conseguiam perceber a nítida mudança de temperatura.


Bom, todos menos duas crianças que ainda discutiam de forma calorosa, nem ligando para o ambiente em alteração ao seu redor.


— Aham… parece que a previsão é de nevasca a noite toda — comentou Nolu, depois de pigarrear.


— Sim, eu ouvi coisa parecida — respondeu Nagi, percebendo a preocupação implícita na fala do avô. É claro que ele nunca admitiria, mas estava claramente preocupado.


Nagi sorriu ao pensar nessa possibilidade. Ao olhar para baixo, conseguiu silenciar seus dois irmãos, afagando os seus cabelos prateados.


Cabelos prateados, essa era a maior característica daquela família. Em meio à população em geral, poderiam ser facilmente reconhecidos em qualquer lugar do mundo que estivessem.


No entanto, Nagi Silverfang não precisa se preocupar com esse fato, afinal de contas havia herdado os cabelos castanhos de sua mãe. Diferente dos demais membros de sua família, ele não atraía a mesma fama secular de seus antepassados.


Diferente…


— Irmão?


A voz de Nagel o tirou de seus pensamentos, voltando novamente a atenção para os mais novos e bagunçando novamente os fios prateados de ambos.


— É melhor vocês irem para dentro — aconselhou de forma carinhosa, sem deixar de olhar de canto para Nolu e acenando levemente com a cabeça. — Já está anoitecendo e vai ficar muito frio aqui fora.


— Que?! Mas nós já estamos seguros aqui dentro, não é, vovô? — indagou Nagel. Porém, o mais velho não respondeu de imediato, pois sua atenção não estava mais voltada para aquela fútil conversa. Seu olhar avaliador estava concentrado em uma outra coisa, que pouco a pouco surgia do leste por entre as copas dos pinheiros e as densas nuvens no céu.


— É melhor entrarem mesmo. — Finalmente respondeu, com as costas viradas para os demais. — Daqui a pouco eu e o Nagi vamos estar indo também. 


— Vão mesmo? — perguntou Nayir, choramingando.


— Claro que sim. — Nagi empurrou ambos de leve em direção à mansão.


— Ah, me lembrei daquela coisa! — falou Nagel, de repente, pegando a mão de sua irmã e saindo correndo dali, puxando-a junto consigo. — Vamos Nayir! Senão nós vamos perder! 


— Hein?! Mas onde estamos indo, irmão?!


— Você vai ver se correr mais rápido!


Enquanto os dois se distanciavam, Nagi suspirou por diversas coisas, mas a principal delas era sem dúvida um certo alívio.


— Esses dois vão se tornar grandes agentes — disse depois de um tempo, limpando alguns flocos de neve que estavam acumulados em seus ombros. — Podem até nos superar.


— Não vá pensando tão longe. — Interrompeu Nolu. — Eles ainda têm um longo caminho pela frente.


— Nossa! Não seja tão ranzinza assim…


— Mas sim. — Finalmente olhou de relance para trás, tirando a sua atenção do leste por um breve momento e cravando seus olhos azuis nas íris castanhas do mais jovem. — Eles são tão promissores quanto você e Nara foram um dia.


Depois da leve surpresa em ouvir o velho admitir alguma coisa, Nagi sorriu. Andando até onde o avô estava, parou ao seu lado e o acompanhou em sua vigília silenciosa ao leste. Mesmo sem poder ver, sabia o que preocupava o ancião. 


No horizonte, um brilho prateado já surgia por entre a fina nevasca do início da noite.


— Eu encontrei uma coisa — falou Nagi sem desviar o olhar do tenro brilho. — Algo que pode mudar o nosso destino.


Porém, para sua decepção, Nolu somente suspirou, cansado. O mais novo já deveria esperar por aquela reação, pois não era a primeira vez que falava sobre o assunto.


— Nagi…


— Dessa vez eu tenho certeza! — Seu tom de voz era esperançoso, mas ao mesmo tempo um pouco receoso. O velho o olhou de canto, com pena.


— Então vamos conversar sobre isso com o seu pai. — A usual voz rouca assumiu um tom sério e intimidador como nos dias antigos. 


A postura de Nagi relaxou, em alívio. Finalmente teria a chance de contar tudo ao seu pai.


— Mas mudando de assunto… — Voltou-se para o neto. — Você voltou mais cedo de Britannia, aconteceu algo de diferente?


Depois de ser pego de surpresa com a pergunta, Nagi olhou para cima e fechou os olhos, sentindo o frio dos flocos de neve tocarem sua pele e evaporarem logo em seguida.


— Neve…


 — Como?


— Muita neve. — Abriu os olhos e encarou o avô. — O Congresso foi adiado pela nevasca. Lembra de ter acontecido algo assim antes?


Nolu ficou em silêncio e franziu o cenho enquanto buscava em suas memórias.


— Se aconteceu foi há mais tempo do que as minhas lembranças alcançam. O inverno deveria chegar só daqui a dois meses.


— Isso também me preocupa…


Ao olhar para Nagi, o ancião percebeu a clara expressão de preocupação em seu rosto.


— A neve precoce não é a sua única preocupação?


O jovem olhou ao redor, como se tivesse medo de que alguém ou algo estivesse os escutando, ação essa que não passou despercebida por Nolu.


— Oh, para você estar tão receoso assim mesmo aqui dentro, outra coisa realmente lhe incomoda, certo Nagi?


— Na verdade, não sei muito bem o que aconteceu…


— Hum, explique.


— No pouco tempo em que estive lá, vários tipos de olhares foram lançados sobre mim, como sempre acontece. — Parou por um momento, tentando achar as palavras corretas. — Mas dessa vez tinha alguma coisa estranha…


— Cuidado, pode estar sobre alvo de algum pervertido — comentou em tom zombeteiro.


— Estou falando sério, e não é sobre simples agentes novatos a quem estou me referindo. 


Um vento forte soprou, balançando tanto a copa dos pinheiros que circundavam a propriedade quanto as longas capas brancas que ambos vestiam naquele momento. 


No entanto, diferente dos demais elementos, os dois Silverfang se mantiveram firmes diante da força da natureza.


— Já estou ficando velho demais para essas coisas. — Virando-se, o ancião começou a caminhar em direção à mansão. — Vá falar com o seu pai e nós conversaremos melhor sobre a situação do Congresso amanhã de manhã. E não fique tão tenso. Sabe que enquanto estiver aqui dentro estará seguro das coisas que vêm do leste.


Nagi permaneceu estático, já conseguindo observar o brilho prateado dominar completamente o horizonte à sua frente. Antes de também se virar e voltar para a mansão, sussurrou para si mesmo:


— Sinceramente, não é desses monstros que eu realmente tenho medo.